30 de setembro de 2007

Amar
maria da graça almeida

Amar é o arrepio que se sente no verão;
é levitar sem tirar os pés do chão;
é tentar dormir para outra vez sonhar
um sonho do qual não se quer mais despertar.

Amar é carregar um fardo de emoção,
é gelar as mãos no afã da pulsação;
é crer anil um céu dormente e desbotado
e ter o dia feito domingo ou feriado.

É o reflorescer seja em qualquer idade
e entre a razão e o coração pressentir
que a paixão não tem prazo de validade.

É manter no amado o primeiro namorado
e encantar-se com seu jeito de sorrir,
mesmo que com este já esteja acostumado.

Cabides humanos
maria da graça almeida


A ditadura da moda
-com o troféu da abstinência,
no pódio da desnutrição-
cerceou a naturalidade
das meninas que nas praças
comiam pipoca, tomavam sorvete.
Montanhas de ossos
cruzam as passarelas.
Ao invés do glamour,
tão-só a anorexia,
que amordaça a liberdade
de viver sob os moldes próprios
da melhor idade.
Os olhos fixos no nada
amparam-se na maquilagem
que lhes camufla as olheiras.
Sobre pernas descarnadas,
num cruel exercício,
a juventude macilenta
e esquelética bamboleia.

25 de setembro de 2007

Sei que estará lá
de maria da graça almeida
Em algum recanto do futuro, sei que você estará.
Com o mesmo sorriso, o mesmo olhar,
o mesmo perfume...as mesmas convicções.
Ainda que numa edição antiga,
feito uma caricatura da figura,
que um dia já foi, ainda assim, bem sei que lá estará,
cheia de energia, com a aparência que nos permite a grande idade,
a esbanjar otimismo, a exalar certezas.
Fios que lhe prateiam as têmporas, sulcos que lhe quadriculam a tez.
Nas mãos, tremores em compasso ternário,
no ensaio da mais linda valsa imaginária...
A emoção criança; a esperança menina;
os desejos adolescentes, porque sentimentos não envelhecem;
porque os anseios não desbotam;
porque o amor não tem prazo de validade;
porque todo dia é um recomeço;
porque nunca é tarde para experimentar;
PORQUE QUANDO OUSAMOS,
É QUANDO PRATICAMOS OS SONHOS.

12 de setembro de 2007

Oração do poeta

maria da graça almeida


Senhor,
ajude-me a ser cuidadoso com as letras que deponho no papel.
Jamais me deixe vacilar diante da verdade.
Não me autorize a expor meus sentimentos sob as garras da intolerância,
sob os olhos da incerteza, sob os riscos da dúvida.
Não me permita falar ou calar apenas em defesa do próprio benefício.
Que minha pena tanto sirva para glorificar as virtudes,
quanto para denunciar o desrespeito e a omissão.
Que por meio de minhas mãos a poesia espalhe-se balsâmica,
levando esperança aos desesperados, encanto, aos desencantados.
Que minhas sílabas amenizem a ansiedade dos aflitos
e preencham o vazio dos depressivos.
Que meus versos inibam as mãos portadoras de objetos contundentes
e armem a voz dos oprimidos com a coragem da opinião equilibrada.
Que meus poemas tenham eco e repitam os refrãos da crença no ser humano
e os da obediência aos princípios da convivência pacífica.
Que minhas letras jamais espalhem desalento, temor, descrédito.
Que meu verbo seja destemido, porém responsável, atento e apaziguador.
Que eu nunca me valha da facilidade da escrita
para angariar aliados às causas indignas.
Que eu observe as letras do outro, buscando sempre encontrar acertos
e não depositando em seus erros um atestado da minha sabedoria.
Senhor, se por um momento eu confundir a medida da seriedade,
ou, perder a noção da civilidade, faça com que minhas letras adormeçam
até que me acorde a consciência e desperte-me a observância
para com a integridade física e mental do meu próximo.
Ponho-me às suas mãos, Senhor, com a promessa
de tentar fazer com retidão a parte que me coube,
a partir do momento em que achou por bem
fazer de mim um poeta.
Que assim seja, em letras, palavras, orações,
agora e sempre.


maria da graça almeida
FORA_
Maria da Graça Almeida
Sai, agora,
da minha casa,
da minha vida,
dos entremeios
da minha lida.
Afasta-te de mim!
Do meu corpo
arranco os desejos
e dos lábios desprendo
teu último beijo.
Maculo de carmim
a cumplicidade
vulgar do acolchoado
de cetim.
Sólida,
minha lágrima
não desliza, nem mesmo
aos solavancos
dos soluços secos
de um peito
em desencanto.
Feito os farrapos
da solidão,
faço em pedaços
a toalha onde
secaste as mãos.
Sem direção,
teus sapatos voam
pelos desvãos
da minha indignação.
A ira que me envolve
faz-me errar o alvo.
Ainda que me fira,
perco a mão, a mira,
a posse, a pose, a estima.
Prendo a lua
dentro do quarto.
Que apenas
a escuridão da rua
vele teu retrato
que jaz colado
na negritude
do asfalto
Fora!
Exata medida
maria da graça almeida
A taça trincou.
Descaso de ambos.
Não nos preocupamos com a dosagem.
Descuidamos da quantidade,
ora nos entregamos ao excesso,
ora nos demos à escassez.
A taça partiu-se. O amor, liquefeito,
manchou o relevo das almas,
maculou a trama da união.
Agora, quase como diz o ditado,
não adianta lamentar o líquido derramado.
Amor, distraído, põe-se fora;
em demasia vaza, entorna;
ao relento, evapora.
O amor para toda a vida
é o amor da entrega e da partilha,
sempre na exata medida.

Decreto de liberdade e amor
maria da graça almeida
A livrá-lo do constrangimento, pesar e da imposição, meu amor, por ser imenso, vem deixá-lo à vontade para que encaminhe seus passos, de acordo com a própria opção.
Em face do seu silêncio e da minha solidão, meu amor, por ser imenso, aceita as sobras advindas de um envolvimento que talvez sobreviva por força da minha intenção.
Meu amor, por ser imenso, poderá manter-se recluso para que não julgue intruso o tom de minhas notas digitais
e ora o deixa liberto para que se indigne diante deste tolo decreto que de vez expõe a pieguice dos meus ais.
Meu amor, por ser imenso, entende o quão difícil é desempenhar certos papéis, por isto não finja pressentir cheia quando baixa estiver sua maré.
Meu amor, por ser imenso, mudo de lamentos,
vibrará com a autenticidade de sua fé.
Ainda que para seu conforto, não mais proclame
este amor imenso, sólido, insólito, intenso,
a chama viva que me habita jamais se extinguirá.
Ah! este meu amor sem bom senso, desmedido,
indefenso... eternamente me acompanhará.

Jeito de sentir
maria da graça almeida
A poesia está no ar,
no mar, em qualquer lugar.
É etérea, abstrata,
não se apanha, não se apalpa.
O poema é concreto,
sai do peito, desce às mãos,
transformando-se em objeto
de valor, de estimação.
A poesia é permanente,
o poema, um repente...
O poema a gente escreve,
a poesia a gente sente.
A poesia é feito espírito,
o poema mero corpo,
a poesia é um ser vivo,
o poema papel morto.
A poesia é doce, calma,
o poema uma criança.
A poesia está na alma,
o poema na lembrança.

11 de setembro de 2007

Essência


Essência
maria da graça almeida
Ainda que eu me transformasse
em dezenas de palavras;
desdobrasse-me em centenas de letras;
multiplicasse-me em milhares de versos,
ainda assim, nunca, com lealdade,
reproduziria minha essência,
pois esta que arraigada me habita
-não por mérito ou, demérito-
jamais poderia ser descrita.
O sentir verdadeiro, -seja o meu, seja o seu-
aquele que revela o eu com as nuanças
das mais íntimas e pessoais posturas,
não é passível de escrita,
pois que de sentimentos mais profundos,
por serem intensos e insondáveis,
não se escreve...apenas se sente.
Assim, cada humano, em seu invólucro perecível,
é o esboço carnal do poema ambulante,
que caminha sobre a alma
da poesia imaterial, etérea...
e intraduzível.