1 de maio de 2010


Instrumento
maria da graça almeida

Jamais quero estar,
do mundo, em algum lugar,
onde, de certa maneira,
usem-me como instrumento
das desventuras alheias.

Jamais quero servir
de arma para cumprir
os desígnios de um destino,
ainda que tais desígnios
tracem tão-só o caminho
de apenas um passarinho.

Precipitação
maria da graça almeida



Não julgue

o peito pela gravata,

o ser pela data,

a voz pela boca,

a cabeça pela touca,

o fato pelos sentidos,

o cão pelos latidos.



Não rotule

o presente pela caixa,

o vinho pela garrafa,

o livro pelo autor,

a peça pelo ator,

o feito pelos perigos,

as dores pelos gemidos.



Não classifique

o homem pelo retrato,

o pão pelo formato,

a comida pelo prato,

o perfume pelo frasco,

a mulher pelos vestidos,

o casamento pelos maridos.



Seja lá o que for,

avalie apenas

quando sabedor

da massa que recheou

as profundezas

do espaço interior.

Monorrimo paupérrimo-em todos os sentidos-
maria da graça almeida

Sobram bocas, falta o pão,
sobre a terra nenhum grão.
Muitos dentes, poucas mãos...
muitos filhos, pouco chão,
pouco sim e muito não,
sem o arroz, sem o feijão,
fio de água sem sabão.
Sobre a terra nenhum grão,
sobram bocas, falta o pão.

Poucos passos, muitos pés,
muita reza, pouca fé;
pouco agora, muito até,
sem manteiga e sem café,
baixo o som, alto o banzé,
tantos ossos sem filé ,
um doutor, vários Josés.
Poucos passos, muitos pés;
muita reza, pouca fé .

Sobre a terra nenhum grão,
sobram bocas, falta o pão.
Poucos passos, muitos pés,
míngua a reza, finda a fé.

Pintura de Rembrant
maria da graça almeida

O embotamento sexagenário
caracteriza as dores da figura.
Na rigidez da postura,
o homem compõe o cenário
com os odores da clausura.