8 de outubro de 2008


Lora
maria da graça almeida

Nem mesmo sei qual o seu nome, só o conheci pelo apelido: Lora.
Motorista de um velho e sovina milionário, na verdade, fazia de tudo, servia também como segurança, enfermeiro, acompanhante e inda realizava os serviços de manutenção da casa. Verdadeiro "pau pra toda obra".
Julgávamos que quando morresse o patrão, o funcionário, pela extremada dedicação, herdaria parte de seus bens.
Qual o quê!
Lora ficara a ver navios, sem emprego, nem sequer a moradia teve garantida.

Nas ocasiões em que meu pai visitou o sovina, eu, ainda menina, ficava conversando com o empregado, sentada nos degraus da varanda.
Deixou-me saber de sua paixão. Disse-me que não era ambicioso, não precisava de muito para viver, só não lhe poderia faltar a cerveja, a companheira, seu único e brando vício.
Apesar de já ter certa idade, Lora era saudável e forte, pudera, seus braços ganharam rijos músculos de tanto conduzir o velho, escada acima e abaixo.
Depois da morte do patrão, tendo que dar um novo rumo à velha vida, foi até minha casa e informou-nos que fazia então, serviços de pintura...caso meu pai precisasse...
Desconfiei que Lora notara certa precisão, pois as paredes da casa já se mostravam descascadas aqui e ali.
Combinado o preço, logo no dia seguinte, compareceu, pronto para iniciar o trabalho.

Eu já percebera que na época de pinturas, de reformas, as lagartixas - que sempre foram o meu grande e profundo pavor -desalojavam-se de seus esconderijos e atordoadas corriam para todos os lugares. Resolvi, portanto, fazer uma combinação com Lora. A cada lagartixa que ele capturasse, eu lhe daria uma garrafa de cerveja. O homem aceitou a oferta, imediatamente.
Naquela época, cursando o sexto ano de piano, eu ganhava meu dinheirinho, por conta das aulas que me metia a ministrar para uns certos desavisados alunos, assim facilmente poderia cumprir com o prometido.

De vez em quando, Lora, sorridente, segurando uma bichinha pelo rabo, gritava para mim:
-Mais uma!
Eu corria, nem olhava ao lado, mas marcava na caderneta de capa preta o aumento da minha dívida.
Um dia, ao amanhecer, quase no final da pintura da casa, minha mãe entrou no meu quarto e perguntou-me com ares de espanto:
-Você perdeu o medo de lagartixa? Está criando uma?
Pulei da cama arrepiada e perplexa.
- Eu? Por quê? Deus me livre!
- É que lá embaixo, num cantinho do quarto dos fundos, há uma caixa de sapato com vários furinhos e dentro dela uma lagartixa...
-Uma lagartixa?!

Entendi...
Pobre bichinha, quantas vezes fora exibida? E bem que eu pude constatar, foi só me levantar e conferir na cadernetinha preta:uma, duas, três...onze...

Senti um ódio mortal de Lora e jurei que em seu túmulo escreveria a frase que só ele e eu -e agora vocês- entenderíamos:
Creio que o vício e a piedade sobrepujaram a honestidade.

24 de setembro de 2008



Comme Sinfonia
maria da graça almeida

Com o mesmo compasso
da interna melodia,
ouço nos acordes
de Comme Sinfonia
o fundo musical
da minha adolescência.
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A gota dependurada
inda vive quartos de hora.
Pelos cílios resguardada
não rola, nem evapora.

Define-me a memória
um amor tido como bom,
que por sobreviver tão pouco
nem causou decepção.

Imagens sinuosas desfilam
com os incômodos da inquietude,
enquanto os sons da maioridade
abafam as vozes da juventude.

Oh, permanente e decantada saudade,
revele-nos os sentimentos
que nos passeiam por dentro
em nostálgicos movimentos...

Oh, saudade sem urgências,
libere-me, recatada, a lembrança,
que dói, mas não tira nacos,
corrói e não deixa buracos.

Oh, saudade sã, que não dilacera,
preencha o vazio insistente
entre o ontem das quimeras
e o indeciso presente
travestido de espera...

20 de agosto de 2008


No Chile há muitos poetas. Não conseguia, eu, compreender o motivo de tal concentração, até quando, num hotel de Santiago, onde a janela abria-se despudoradamente para a magnitude das Cordilheiras, entendi! Envolvida por certa magia e estranha fantasia, consegui descobrir no perene espetáculo a abundância da fonte de onde flui a inspiração do chileno. Aí não tive saída, vigiando minha respiração, que já pressentia ofegante, larguei-me a escrever, olhando pela janela como se mirasse um quadro revelador das fronteiras do alumbramento e do limiar da alucinação.
Maria da Graça Almeida

Cordilheira
Maria da Graça Almeida

"Pós sinto" as pegadas dos deuses latinos,
pousando os pés divinos
sobre terras elevadas,
virgens meninas despenteadas.
Se uns o fizeram sutilmente,
outros calcaram de forma tal o chão,
que o viram, entre um passo e outro,
subir em altos picos, em duros bicos.

Meus olhos vagam pelo espaço alongado, recortado, sinuoso...
Galgam íngremes montanhas e, vertiginosamente,
despencam em quedas livres e fatais.
Depois, dão-se a escorregar e deslizar em pisos lisos,ou a rastejar,
arranhando-se na aspereza da textura visual.

Quando, dos anjos meninos, o sopro cálido
derreter o frio espesso e alvo que se moverá,
graciosamente, sobre a austeridade do marrom,
meu ser todo frágil, tolo e perplexo,
suspirará ante o imensurável espetáculo
do perpétuo bolo achocolatado,
coberto por um branco e absurdo glacê,
que lindamente escorrerá desenhos
abstratos e fantásticos, jamais
consumidos por simples mortais.

Às vezes os Deuses sabem ser cruéis!
Muitos deles zombam da impotência dos homens.
Outros lhes testam o tamanho do conformismo.
Nem tudo o que fartamente lhes expõem aos olhos,
facilmente lhes dispõem às mãos.

6 de julho de 2008


Em algum lugar
maria da graça almeida


Neste exato momento

há alguém partindo, alguém chegando;

há alguém sorrindo, alguém chorando.

Na complexidade do universo,

nenhum minuto é de dor absoluta,

nenhum segundo é de plena alegria,

tampouco de completa apatia.


Neste exato momento,

há um bebê que experimenta

um choro temeroso, profundo, ansioso.

Neste momento, de mim muito próximo,

pela origem, pelo afeto,

há alguém lutando pela vida,

ou dela desistindo, a cerrar os olhos

no desvendar dos mistérios e segredos,

no gozo da surpresa e do medo.


Neste momento há seres entregues,

amando-se loucamente

e seres odiando-se cegamente,

sem a preocupação com o amanhã,

na benevolência da afirmação,

ou no egoísmo da negação.


Neste momento há alguém traído;

há alguém abençoado, alguém excomungado;

há alguém sob a mira de um "tira",

ou ameaçado pelo ofício de um bandido.


Neste momento, há mais um aposentado sofrendo

as conseqüências do tempo trabalhado.

Neste momento há alguém derrotado,

em batalhas onde apenas há vencidos.


Neste momento, em algum lugar do planeta,

há alguém escrevendo coisas que encherão gavetas;

há quem no papel derrame letras

que tomarão o tempo dos desavisados,

cujo pensamento se ocupará da leitura

das mais estranhas figuras.


Neste exato momento, num profundo mal-estar,

cá estou eu a sombrear a tela,

querendo de algum modo me perpetuar,

que se não através das nuanças

dos versos de completa insignificância,

talvez, através do enlevo e da emoção,

que são de irrestrita relevância.


Do mundo, em todos os momentos e lugares,

sei que haverá, irremediável,

a dor do temor, da impotência,

da perda, da saudade, da desolação.

E neste mundo, mesmo convivendo

com os encantamentos e espetáculos,

os espectros dos citados maus tratos,

infelizmente, sempre nos ameaçarão.


Neste exato momento, em algum lugar há...

1 de julho de 2008


Saída
maria da graça almeida

Sairei da tua vida
sem as dores da paixão.
Secarei minhas feridas
no unguento da razão.

Mente sóbria e face ao vento
não computam prejuízos.
Boca oca de lamentos,
olhos cheios de sorrisos.

Passos largos, seta longa,
linha certa, ou contramão.
Sigo em frente e sem delongas
reafirmo a intenção.

Ora deixo a tua vida,
sem temores, sem afã.
Largo a chave na saída;
levo o ontem e o amanhã.

16 de maio de 2008


Em apenas um segundo
maria da graça almeida

Os segundos, apesar de infindos não se repetem,
renovam-se...a cada segundo.
Em apenas um segundo, tudo pode acontecer.
Chegamos ou partimos, ganhamos ou perdemos,
choramos ou sorrimos.
A transmutação vive à espreita para alcançar
e laçar o tempo em que se nos instalará.
Os segundos contêm o sempre, o nunca,
os encontros, os desencontros, a certeza,
a incerteza...
O júbilo e o pesar, que estão um do outro
a curtos passos, conseguem irromper,
de repente, tão-somente,
em um segundo, na modificação das trajetórias,
a desenharem novos rumos
e inusitadas histórias, que oferecem
o céu, ou que tiram o chão.
Os segundos ainda que breves, fugazes
são capazes de plantar a dor ou de colher a felicidade.
A vida neles acontece...a morte também.
Neles ocorre o princípio, acontece o final.
Em apenas um segundo pode nascer uma idéia
ou morrer um ideal.
Os segundos perpetuam-se através da saudade
e na alegria aniquilam-se pela efemeridade.

23 de abril de 2008


Passo
maria da graça almeida

Passo,
como passa a folha levada
pela insensatez do vento,
no jeito de ir sem sentir,
no modo de sair sem querer,
na forma de cair sem pedir.
Passo, como passa o pássaro,
que sem a anuência do divino,
põe um ponto clandestino
na palidez do horizonte.

Passo, como sem compasso
passam as gotas da chuva,
que por pressa ou, preguiça
descem sem escolher o caminho
e mesmo ao léu, sem destino,
invadem os poros da terra.
Passo e, díspares, imprimo veios
que caminham inconseqüentes
que se encontram em nascentes,
e se perdem em afluentes.

Passo, passo por passo,
com tropeços, com cansaço,
nas passadas dos percalços,
sem a dose do alento,
nos segundos do momento,
nas voltas, nos nós e laços,
nas idas e voltas do tempo.
Passo e, na dor do movimento,
piso um passo sem ungüento.
Passo...

11 de abril de 2008



O rio
maria da graça almeida

Rola o rio adormecido e mudo,
em cochicho miúdo, absurdo!
Desliza em cochilos alados,
num leito molhado e cansado.

Rola o rio em embalo trôpego,
com sibilos roucos e sôfregos.
Verte um choro machucado,
benevolente ou irado.

E rola descendo a serra,
em desgraça ou benefício,
ora mata a sede da Terra,
ora afoga-a em desperdícios.

Incauto, ignora o rio:
se a terra assim o quisesse,
dele faria um só fio,
antes que a cheia viesse.

28 de março de 2008

Sopro
maria da graça almeida

Há mais pessoas que sopram a chama para apagá-la,
do que as que o fazem para reavivá-la.

19 de março de 2008





Dentro de mim

maria da graça almeida

Dentro de mim
há um duende sem vida,
morreu de medo de morrer;
há um mofo iminente
na parede umedecida
pelo suor da solidão;
há a inquietude gelada
que flagrou o espectro sonolento
das mais frias madrugadas.

Dentro de mim
há a mágoa advinda
da perplexidade
diante da dormência
dos deuses e dos mitos.
Dentro de mim há um rito
de rebelião com causa,
mas, sem efeito ou direito
à perenidade humana.

Dentro de mim há um rio
que dia a dia resseca suas águas,
pois não suporta seguir
sem deixar rastros ou pegadas,
nem tolera ser limítrofe
das terras batidas
por onde a vida passa,
poeirenta e desprevenida.

Dentro de mim,
há o descaramento
que teima em ver -sem poder-
o fundo do poço,
o final da estrada
e o instrumento
que de vez distanciará
o denso, do sutil;
o corpo, da alma,
quando - insensato ou não-
irá submetê-los
à crueza da separação.



Entrelinhas

maria da graça almeida

Entregue-se ao solo do destino
e ao colo da poesia paraíso;
não fique à margem do caminho,
nem desbrave a terra do sozinho.

Molde o verso em redondilha,
com o cuidado de um santo,
pudores, recato e canto,
véus, capas e cantigas,
na mudez do doce segredo
de um recôndito desejo.

Faça do poema um verbo silente
e apenas o sustente,
provando-o com jeito,
posto que o pecado é um defeito
que todos os anjos têm medo.

Deixe-o renascer -num suave pranto,
sem testemunhas, com manto-
de um soluço de doçura,
que o sossegue da sua sede
de carinho e ternura.

Faça da palavra de candura
um tapete de suspiros,
onde cada amargura
adormeça sem gemidos,
e sem o insano perigo,
que impõe toda procura.

maria da graça almeida

18 de março de 2008


Sabe lá...
maria da graça almeida

Da morena esguia, o suspiro vasto; da ruiva robusta, o sopro exausto...
Vários ritmos, múltiplos passos, diversos pesos, o mesmo cansaço.
Impresso nos caminhantes, o tempo! Ora trôpego, mas a carregar uma aura de sabedoria e experiência; ora cambaleante -na indecisão dos primeiros passos-, isento de pegadas, de rastro; ora lépido, atrás das emoções,
dos sonhos próximos ou distantes, com crença, garra e força incomuns.
Sentada no banco úmido do parque, fitava-os espantada, nunca antes me rendera diante das surpresas, da magia e dos mistérios da vida, tampouco das evidências. Só viver é o que vale a pena -sempre foi este o meu lema-, porém percebi que a vida além de atraente, às vezes, sabe bem ser contundente.
Por isto hoje digo: viver vale a pena; morrer também!
Enquanto me conformava com tal descoberta, consolava minha filha que experimentava o mergulho inaugural na mais profunda depressão, e, sem saída, tanto quanto ela debilitada, ou inda mais, inventei, enfim, de ser forte...
Ofereci-lhe o que não tinha: otimismo, firmeza, coragem.
Como? Não sei...
Baixinho, arrisquei Djavan: “ sabe lá, não ter e ter que ter pra dar, sabe lá..."