21 de abril de 2010


Abstrato quê
maria da graça almeida

Em meus ouvidos moram gemidos, que soturnos retraem-se;
no coração trago mitos que um dia enalteci,
em minha boca tenho gritos, que emudecidos esvaem-se;

Através de certas feridas, tardiamente, entendi
que as cores da vida, da aura e da alma dependem das dores que cada um traz dentro de si.

É impossível interagir com enigmáticas damas,
que têm, justa, a fama de levarem no trato um quê
do triunvirato mais abstrato que já conheci.



O servir -ainda que, às vezes, religiosamente
correto- cansa. Cada um responde ao servilismo
como melhor lhe aprouver.
Maria da Graça ALmeida

Maria Mortalha

Maria da Graça Almeida


Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,

vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.

Os olhos, tanto mais fundos, coroados por olheiras,

cerravam-se moribundos, nessa hora derradeira.



Implorando-lhe ajuda, veio um moleque qualquer

- Vó, apanha uma agulha, tira-me o bicho do pé!

Servil, levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha

e já mais morta que viva o bicho do pé estraçalha.



Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,

quando lhe chega a nora , chorando a fome e a sorte.

Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,

serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.

Com a fome, então, saciada e o corpo fortalecido,

parte a jovem senhora com olhos agradecidos.



Maria assim, novamente, põe-se no leito de palha,

julgando que certamente não mais tiraria a mortalha.

E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.

Queria do sal só um pouco que lhe salgasse o feijão.

Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...

pra atender a boa vizinha, ergueu-se mesmo ofegante.

Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.

Maria já fria descora e aguarda da Morte a hora.



A Morte, que vinha chegando, notou-a em pele ardente,

porém, percebeu que a lida tornara Maria valente.

Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,

ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.

Maria coloca, surpresa, os olhos esbugalhados

sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.



A Morte impõe, soberana: - Sobreviva só mais um dia,

ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!

E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,

exige-lhe que ao fogo torne o leite que frio jazia.



Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha

e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte detalha:

- Em face dos desmandos alheios,

viverei mais um ano e meio.



Maria da Graça Almeida/2001
texto publicado na Antologia Prêmio Cultura Nacional