30 de maio de 2010

Lábios Vermelhos


Lábios Vermelhos
maria da graça almeida

Sobre a mesa, a régua longa, cor de canela, números grandes, brancos. Aterrorizados, meus olhos percorriam-na de ponta à ponta. Muitas vezes seu uso era indevido. Não recaía diretamente sobre ninguém, mas os golpes com ela desferidos, mesmo esfolando apenas mesas e cadeiras, chegavam a ser contundentes, porém, combinavam com a dona da voz seca e dura que a regia
-Aqui! Coloca o lápis aqui! Ouviu bem? Aqui! Aqui!
O lápis mudava de lado. Passava de uma mãozinha trêmula para a outra ainda mais. Desavisado, o menino permitia que seu queixo pontudo denunciasse-lhe o pânico. Sentia-se iminente um soluço.
Não chore, não chore - em pensamento, eu lhe pedia-.
Todas as manhãs, assim que eu chegava, de pronto examinava a sala conferindo sua presença. Se visse o corpinho franzino já a postos, um suspiro de alívio saia-me do peito: - Graças a Deus! Tomara que ele agüente. Tomara que ela desista. Ele, frágil, indefeso; ela, obstinada, persistente. Incansável! Ele pequeno, miúdo; ela, enorme, gigante. Batalha desigual.
Um dia, numa de suas investidas, ela torceu-lhe a orelha. Olhos arregalados, ele balbuciava algo indecifrável. Eu olhava dela o batom vermelho, laranja, amarelo, branco...Preto...tudo escuro. Bum! Um baque seco. Era minha cabeça que sobre a carteira despencara. Um súbito desfalecimento. O galo cantou.
- Essa menina não come nada, doutor! -Minha mãe preocupada. E o batom vermelho mudando de cor voltava à minha lembrança e meus ouvidos tornavam a captar os sons desconexos do menino.
- Veja, doutor, de repente, fica assim...branca! -Minha mãe insistia-.
Mais uns dias e o vi no pátio, no centro de um roda de moleques insolentes que se riam da sua gagueira. Antes ele falava lisinho, agora só aos solavancos. Emudecida, não tive coragem de assistir ao desfecho da crueldade. Tranquei-me no banheiro. E lá fiquei esquecida num canto úmido.
Será que amanhã ele virá? Veio. Uni meus dedos. Um gesto habitual de agradecimento aos céus. Mas os lábios vermelhos não desistiam. Moviam-se com rispidez, gritavam esbravejavam, cada vez mais alto, mais forte e insistiam na obrigação do pequeno.
E o lápis continuava a dança, de um lado por outro, um lado pro outro, de um lado pro outro...até que... pá! Um ruído seco! O rostinho do menino virado pro lado, na bochecha, a marca dos dedos longos e finos. Meu coração pulsava nos ouvidos.
Comecei a ver tudo com uma lentidão exagerada. E dolorida. O menino levantou-se, vagarosamente, subiu na carteira, olhou para todos e bradou com todas as força de um bravo e ultrajado soldado:
- Vai bater na tua filha e passar batom no teu...- a derradeira palavra, engoliu, pálido! Ficara assustado com a sonoridade de sua reação e a ausência momentânea da gagueira -. Solidária, e consciente do que viria depois - não desfaleci – tal qual ele, subi na carteira e tão alto quanto, gritei indignada:
- Vai mesmo, Dona Arlete! Vai, sim! A senhora ainda não sabe que o José Ciro é canhoto?!

Após a tentativa do primeiro ensinamento, pressenti qual seria minha profissão.

A primeira dor



A primeira dor
maria da graça almeida

Agora, morto...

Sentada no degrau da varanda, sob o céu azul de sempre, que de repente embranquecera, tive a real noção do meu tamanho. Era eu diminuta, no mundão de meu Deus...
Não entendia as folhas balançando com preguiça, nem conseguia compreender o que meu peito tentava explicar-me.
Perplexa, sentia uma dor que desconfiava não ser a do corpo.
Era a primeira vez que convivia com aquela sensação esquisita.
Olhava minhas mãos, meus braços, não via sinal nenhum.Feridas visíveis eu não tinha e
ainda assim experimentava uma ardência que, dentro de mim, confundia-se com um vazio
insuportável.

Logo que acordei, surpreendi minha mãe na cozinha.
Seus olhos boiavam.
Olhando o nada, ela confidenciava à ajudante:
- O menino morreu.
Entendi tudo. Falava do meu único amigo. Menino moreno, olhos profundos e brilhantes entre enormes cílios negros. Pernas finas, mas de uma vitalidade ímpar.
Nunca que eu conseguira acompanhar seu ritmo.
Veloz demais, não parava um minuto, subia e descia da camioneta do pai com uma agilidade admirável.
Era mais velho do que eu. Fizera nove anos, um quase adulto, na minha concepção, no entanto, tinha-me enquanto amiga. Era paciente comigo. Reconhecia-me.

Agora, morto...

A bicicleta que o levava de lá para cá, numa ruidosa alegria, acabou por conduzi-lo
ao céu, tão cedo...
Céu? Eu olhava para cima e apenas via a brancura sem graça das nuvens esparsas. De seu riso engraçado, o silêncio.
Tudo por causa de esfoladinho de nada, do qual tampouco ele reclamara...
Bicicleta desgraçada!
Tapei a boca com a mão para impedir que minha mãe ouvisse meu pensamento.
Ela, que não se dizia supersticiosa, detestava o termo, também a palavra azar.
Sempre que alguém os proferia, logo se mostrava preocupada:
- Não fale assim...não é bom.

Quando o soube doente, quis visitá-lo.
-Não pode! – era minha mãe consternada.
- Por quê?
- As visitas estão proibidas.–explica-me paciente- Ele está sensível aos ruídos. Qualquer barulho faz com que sofra de susto e tremores, convulsões. A febre é alta, está com tétano!
Tétano...eu repetia baixinho...soletrava devagarzinho: té-ta-no... nunca antes ouvira aquela palavra.
Quisera eu naquela hora emudecer os cães, aquietar os sussurros do vento, parar a andança dos carros e toda a movimentação que -com os aus, os vruns, os buns -aumentasse os ais do amigo.
Ele não podia sofrer. Precisava sarar e logo. Eu tinha pressa e certa estava de que ele também.

Agora, morto...

A idéia do nunca mais me desalentava. Sentia-me zonza, fraca.
E eu sempre tão lacrimejante não conseguia rolar os pingos que lavassem aquele sentimento estranho e infeliz.
A dor do corpo eu conhecera nas constantes crises de bronquite. Sem falar dos pontos que levei no pé, a seco, nada de anestesia. O médico que me socorreu era legista...fez o que pode...
Naquele dia eu inaugurava, com toda intensidade, a dor da alma.
Descobria a temperatura do medo. E a cor da aflição.

Soube que a impotência do homem não permite que ele conduza nem o próprio destino.
Minhas verdades assumiram o antes e o depois.
Não mais consegui viver sem estar sob a mira da preocupação.
Precocemente, comecei a perceber os sustos da sobrevivência.
Naquele dia conheci uma das esfarrapadas desculpas que a morte, com desenvoltura, costuma usar.
Nos baixos dos meus sete anos, não entendia por que a vida permitia que morte desse
a palavra final.
Ainda hoje não entendo.