30 de maio de 2010

A primeira dor



A primeira dor
maria da graça almeida

Agora, morto...

Sentada no degrau da varanda, sob o céu azul de sempre, que de repente embranquecera, tive a real noção do meu tamanho. Era eu diminuta, no mundão de meu Deus...
Não entendia as folhas balançando com preguiça, nem conseguia compreender o que meu peito tentava explicar-me.
Perplexa, sentia uma dor que desconfiava não ser a do corpo.
Era a primeira vez que convivia com aquela sensação esquisita.
Olhava minhas mãos, meus braços, não via sinal nenhum.Feridas visíveis eu não tinha e
ainda assim experimentava uma ardência que, dentro de mim, confundia-se com um vazio
insuportável.

Logo que acordei, surpreendi minha mãe na cozinha.
Seus olhos boiavam.
Olhando o nada, ela confidenciava à ajudante:
- O menino morreu.
Entendi tudo. Falava do meu único amigo. Menino moreno, olhos profundos e brilhantes entre enormes cílios negros. Pernas finas, mas de uma vitalidade ímpar.
Nunca que eu conseguira acompanhar seu ritmo.
Veloz demais, não parava um minuto, subia e descia da camioneta do pai com uma agilidade admirável.
Era mais velho do que eu. Fizera nove anos, um quase adulto, na minha concepção, no entanto, tinha-me enquanto amiga. Era paciente comigo. Reconhecia-me.

Agora, morto...

A bicicleta que o levava de lá para cá, numa ruidosa alegria, acabou por conduzi-lo
ao céu, tão cedo...
Céu? Eu olhava para cima e apenas via a brancura sem graça das nuvens esparsas. De seu riso engraçado, o silêncio.
Tudo por causa de esfoladinho de nada, do qual tampouco ele reclamara...
Bicicleta desgraçada!
Tapei a boca com a mão para impedir que minha mãe ouvisse meu pensamento.
Ela, que não se dizia supersticiosa, detestava o termo, também a palavra azar.
Sempre que alguém os proferia, logo se mostrava preocupada:
- Não fale assim...não é bom.

Quando o soube doente, quis visitá-lo.
-Não pode! – era minha mãe consternada.
- Por quê?
- As visitas estão proibidas.–explica-me paciente- Ele está sensível aos ruídos. Qualquer barulho faz com que sofra de susto e tremores, convulsões. A febre é alta, está com tétano!
Tétano...eu repetia baixinho...soletrava devagarzinho: té-ta-no... nunca antes ouvira aquela palavra.
Quisera eu naquela hora emudecer os cães, aquietar os sussurros do vento, parar a andança dos carros e toda a movimentação que -com os aus, os vruns, os buns -aumentasse os ais do amigo.
Ele não podia sofrer. Precisava sarar e logo. Eu tinha pressa e certa estava de que ele também.

Agora, morto...

A idéia do nunca mais me desalentava. Sentia-me zonza, fraca.
E eu sempre tão lacrimejante não conseguia rolar os pingos que lavassem aquele sentimento estranho e infeliz.
A dor do corpo eu conhecera nas constantes crises de bronquite. Sem falar dos pontos que levei no pé, a seco, nada de anestesia. O médico que me socorreu era legista...fez o que pode...
Naquele dia eu inaugurava, com toda intensidade, a dor da alma.
Descobria a temperatura do medo. E a cor da aflição.

Soube que a impotência do homem não permite que ele conduza nem o próprio destino.
Minhas verdades assumiram o antes e o depois.
Não mais consegui viver sem estar sob a mira da preocupação.
Precocemente, comecei a perceber os sustos da sobrevivência.
Naquele dia conheci uma das esfarrapadas desculpas que a morte, com desenvoltura, costuma usar.
Nos baixos dos meus sete anos, não entendia por que a vida permitia que morte desse
a palavra final.
Ainda hoje não entendo.

Nenhum comentário: