29 de abril de 2010


Música
maria da graça almeida

A música insiste
em meus ouvidos.
O tom indeciso,
os intervalos titubeantes
ferem feito o chicote
no dorso de um fugitivo
resgatado para
cumprir a sentença.
Ou, tais quais as pedras
nos pés doridos
de um faminto retirante ,
sozinho,
perdido pelos
atalhos do caminho.

As notas de sofreres
ensimesmados,
por livre arbítrio,
abusam da liberdade
das fermatas.

Nas pautas do desalento,
os sons ousam um agudo.
É quando o dissabor da partitura
indicia colcheias amedrontadas
pinçadas do pensamento;
semifusas confusas
e claves angustiadas,
que apenas denominam
os lamentos.

Os acordes dissonantes gemem
entre pausas contundentes.
E o girassol...
Ah! Os girassóis... se pelo menos
não se voltassem para ouvi-la...
mas, a sonoridade se atreve
e a melodia descreve
o mesmo percurso do sol.


maria da graça almeida

Autenticidade
maria da graça almeida

A criança é surpresa, é descoberta. Não se abate pelo tédio, não se oculta em segredos, nem tem razão para o remorso. Permite-se ousar, por isso pratica os sonhos, com a mesma serenidade com que adormece.
Quando não sabe, inventa; quando não pode, imagina; quando desconhece, descobre.
O que para nós - os já saturados de realidade - é absurdo, para ela é normal, natural. Suas possibilidades ainda não foram poluídas ou influenciadas pela racionalidade humana, pela indocilidade urbana, nem pela crueldade social.

Aos três anos, Felipe, filho único, queria um irmão. Remexeu o armário das panelas. Colocou-as no chão e, com a colher-de-pau, acreditava cozinhar.
Compenetrado, explicou à mãe:
- Vou fazer um irmãozinho.

Empreendia a batalha para a realização do desejo, uma ação positiva, advinda da certeza do querer: eu quero e faço, não espero por ninguém. Eu quero e consigo, ou, dou-me o direito e a oportunidade de tentar.
Ainda que não tenha verbalizado o pensamento, sua ação, por si , veemente, proferiu o discurso.
O equívoco de uma manobra não invalida a tentativa e nem frustra o manobreiro, uma vez que, a cada experimento, saímos reforçados nos propósitos e sentimos, plena, a nossa determinação.

Paris
-maria da graça almeida-

Paris tem certa magia,
nem bem posso explicar...
É uma coisa que indicia
o elã, livre, no ar.
É a alma que se amplia,
como um raio de luar,
é a cor da fantasia,
que se espalha no lugar.

É a arte do imortal,
ou o ofício do mambembe,
é a tinta natural,
da mão firme, que não treme.
É a torre colossal,
férrea, que o espaço não teme.
É um arco triunfal,
das avenidas, o leme.

É o perfume, o olor
da mulher que não se apressa,
é, no Sena, o rumor
dos barcos, fazendo festa.
Paris tem certa magia,
nem bem posso explicar...
É uma coisa que indicia
o elã, livre, no ar. ...

O filho do meio
Do livro Olhos Espertos

De Maria da Graça Almeida

Assim tão bonito...
e ninguém me adula!
Não sou o primogênito,
nem sou o caçula.
Não sou o primeiro,
tampouco, o terceiro.
Sou filho do meio
e, de graça, sou cheio
Do tal sanduíche,
sou só o recheio.
Mas...digo a verdade
e ganho a aposta:
sempre é do recheio
que todos mais gostam!