7 de dezembro de 2010

Antes e depois

Antes e depois
maria da graça almeida


O antes, do derredor, é a influência;
o depois é o que sobra da essência.

O antes, do caso, é a antecipação;
o depois é o caso consumado.
O antes e o depois, da moeda, são os lados.

O antes, do fato, é pura ausência;
o depois é mera consequência.

O antes, da ocorrência, é o pressuposto;
o depois é tudo o que permanece no gosto.

O antes tão só é a efervescência,
pese-o bem, para que, no depois,
não lhe pese a consciência.

Preciso dizer

Preciso dizer
maria da graça almeida


Não retenha ou represe

os ditos em minha garganta,

nem no peito os meus soluços;

a tranca é um corte no pulso;

a mudez é poço vazio;

a chave, o jazigo mais frio.


Não me aprisione as letras,

nem me esconda o dicionário,

o dizer não possui cadeado,

o sentir já é nó desatado.


Não me ameace o verso

com espinhos ocultos,

a dor é um grão submerso

nos mares dos velhos insultos.


Não me provoque com suas loucuras,

hoje, finjo crer em falsas procuras

e só as desarmo com simples ternura,

posto que a poesia é a figura,

que impune inda flutua

nas amargosas águas

das doces amarguras.


Não queira que me mova

tão só entre seus pontos,

que repinte seus traços,

que reconte seus contos.

Meu rumo é um desaponto?

Cada qual pisa os passos

com largueza, sem percalços.


Deixe que, livre, fotografe

com a lente que mesma eu puser,

responderei pelo mal, se um dia o fizer,

pois que ninguém jamais conduzirá a brisa

que, brejeira, bailando vem,

nem a bobice do vento mais forte

que só leva a poeira aos olhos de alguém.

8 de novembro de 2010

Arte

Criada por mentes brilhantes, a arte é uma mentira na qual todos, ou quase todos, acreditam.
O que vemos não existe na realidade, tudo é extraído do cérebro privilegiado do artista.
Facilmente confundimos o artista com sua criação ou vice-versa. É quando o criador e a arte que ele personifica fundem-se, tornando-se única forma, único ser, ainda que ilusórios.
Mesmo utilizando um modelo inspiratório, o artista o reproduz por meio de sua fantasia ou da maneira própria de reconhecê-lo, ainda que visionária.
As idéias utopistas, quiméricas não podem nascer de um cérebro comum ou de um que foi trabalhado para enxergar as coisas como realmente se apresentam, sem acrescentar sua inventividade.

Outro dia fiquei perplexa quando disse a uma criança:
-Sente -se aqui comigo , vamos pilotar este avião .
E ela admirada me respondeu:
-Isto não é um avião, é uma cadeira.
Aos pais e aos professores, cabem os cuidados de oportunizarem à criança situações em que possa fluir a criatividade, respeitando, considerando-a e, o mais importante, não coibindo sua ação.

28 de outubro de 2010

Desabafinho
maria da graça almeida

A máxima que diz: vivendo
e aprendendo é verdadeira .
Mais verdadeira ainda é a :
vivendo e conhecendo-se.
Nunca me imaginei
numa situação
de confronto
declaradamente "bélico".
Aconteceu!
Não me vali dos palavrões
do mundo,
que conheço e evito,
mas abusei dos termos:
mentiroso, vagabundo...
Então, descobri que
minha educação,
feliz ou infelizmente,
apenas respeita os limites
da minha indignação.

13 de outubro de 2010

Poema bobinho

Poema bobinho.
maria da graça almeida

Os dias passam depressa,
as noites espalham negror,
na madrugada funesta,
despediu-se meu amor.
Tudo ficou tão sem graça,
da vida, esvaiu-se a cor,
os canteiros lá da praça
desbotaram, não têm flor.
O pinho emudeceu,
a nota desafinou,
o dia adormeceu,
o mundo já se acabou.

Tempo... tempo...tempo,
hora, tarde, noite e dia,
a dor, em movimento,
vestiu nova fantasia...

Tudo começa a ter graça,
a alegria sublima as cores,
as floreiras lá da praça
parecem-me cheias de flores.
Os dias desfilam sorrindo,
as noites espalham rumores,
o amor que me vem surgindo
substituiu velhas dores.
O pinho soltou sua voz,
as notas mudaram de tom,
o afeto não é um algoz,
amar de novo é bom!

26 de agosto de 2010

Poema da Volta



Poema da Volta
Maria da Graça Almeida

O trem a balançar me levava,
seguindo a quente manhã,
eu carregava na bolsa
biscoitos e uma maçã.

As casas corriam lá fora,
também o campo e a flor,
tudo era verde no campo,
tudo na flor era cor!

E assim correndo comigo
nem ao menos olhavam o trem,
atordoados, sentindo
o balanço do vaivém.

Trens que seguem ao norte,
trens que rumam ao sul,
uns em preto e prata,
outros pintados de azul.

A viagem fazia-se longa,
eu já um tanto enjoada,
ouvia do trem o apito,
soando-me feito um grito!

E o trem resfolegante se ia...
Na paisagem o olhar eu perdia.
Meus pés com certo inchaço
mostravam um ser em cansaço!

Finalmente adormeci.
Foi sono férreo, profundo,
mas ouço a voz que me chama:
- Moça, já é Pindorama!

Acordei assustada, eu juro!
Era tarde, fazia-se escuro.
Tão grata fiquei nessa hora,
por não me chamarem: senhora!

É que ao deixar a cidade,
era jovem e saí sem vontade...
Agora, voltando senhora,
de volta tenho a mocidade!

Por isso chamada de moça,
pelo guarda do trem que sorria,
digo ainda que estranho lhe soe:
- Seu guarda, que Deus o abençoe!

31 de julho de 2010

Revelação



Revelação
maria da graça almeida


Se desta vida fores primeiro,
nada haverei de fazer.
Emudecida , seguirei teu féretro
e em teu ataúde colocarei a mais bela flor,
que um dia por aqui inda irá aparecer.

Duas gotas cairão e eu nem as disfarçarei.
Não mais precisarei esconder
os males que em vida de ti recebi .
Não porque tu quiseste,
mas porque eu consenti.

Porém, se eu partir primeiro,
ah, aí sim bem saberás o quanto te amei
e os mares que por ti deitei.

Saberás das noites insones
em que louca perambulei,
provando com dor
migalhas do amor.

Verás o tamanho da adaga
que me feriu o coração,
ao saber-te em súbita
e definitiva união.

Tocarás meu vestido amarelo
e nele verás as marcas da tua partida,
nas nódoas doloridas, das lágrimas caídas.

Somarás o tempo em que me mantive
contigo comprometida,
sem que te tivesse nem mesmo em retrato,
sem que meu coração ao menos me alertasse,
para o engano dos meus atos,
tampouco para meus desavisados passos.

Após a minha despedida,
ouvirás esta cantiga,
na voz da mesma amiga,
que sem nunca me negar favores
acompanhou-me pela trilha das dores.

Sei que ela atenderá o derradeiro pedido,
posto que inúmeras vezes
amparou o meu amor desiludido.

Ouvindo-a , enfim, meu rapaz,
não chores, jamais,
mantém secos os olhos
e engole cada uma das lágrimas,
com o pão do desamor
que tua insensibilidade amassou,
pois as mágoas, em gotas convertidas;
os choros desta insana lida;
as aflições liquefeitas já chorei eu,
desperdiçando muito tempo da vida
que um dia Deus me concedeu.

--------------------------------------------------

5 de julho de 2010

Cabides humanos



Cabides humanos
maria da graça almeida

A ditadura da moda
-com o troféu da abstinência,
no pódio da desnutrição-
cerceou a naturalidade
das meninas que nas praças
comiam pipoca,
tomavam sorvete.

Montanhas de ossos
cruzam as passarelas.
Ao invés do glamour,
tão-só a anorexia
que amordaça
a liberdade de viver
sob os próprios moldes
da melhor idade.

Os olhos fixos no nada
amparam-se na maquilagem
que lhes camufla as olheiras.
Sobre pernas descarnadas,
num cruel exercício,
a juventude macilenta
e esquelética bamboleia.

Poeta do silêncio



Poeta do silêncio
maria da graça almeida

Sou poeta do silêncio,
da tortura, do tormento,
das ciladas, das caladas,
da mudez e do lamento.
Sou poeta vagabundo,
da mentira poeirenta,
que sorveu a gota insossa
de uma língua sonolenta.

Sou poeta -dos sem lida,
dos sem glória, dos sem nada-
que emprestou sua ternura
a uma lua mascarada.
Sou poeta da procura
e das letras apagadas
e no céu quando estiver,
declamarei do eu poeta
com a voz do eu mulher,
pois a minha fala esperta,
sem medida, imodesta,
dirá só o que Deus quiser.

1 de julho de 2010

Remorso/Arrependimento


Remorso/Arrependimento
maria da graça almeida

Nos dicionários,
em tempo,
logo se fica
sabendo
que remorso e
arrependimento
são vocábulos
sinônimos.

Em minha
opinião,
os sentidos
das palavras,
não são assim
tão simples
não!

Ao meu ver,
o remorso tem-se
pelo que se faz
e o arrependimento
pelo que
se deixa
de fazer.

Remorso
é o grande aperto
que espreme
nosso peito,
e nos treme
o coração,
se, em prejuízo
de alguém,
algum dia
nos valermos
de contundente
ação.

Arrependimento
é o sentimento
gerado por uma
contra ação,
ou seja,
por decisão
relegada,
com descaso,
ou insensatez
ou tão só
por opção.

28 de junho de 2010

Tempo


Tempo
maria da graça almeida

Abomino fotografias, documentos inquestionáveis
da devastação peculiar do calendário.

Certa jovem, do retrato, intrigada me espia.
Ora idosa, ao vivo, sob pele curtida,
derrama passado e nostalgia.
Fito rostos e corpos, comparo-os
e percebo que do ontem pouco restou.

Se por um lado o tempo traz a minoração das dores,
por outro, submete-nos à engenhosa metamorfose.
Estranha ação. Intenso poder!

Tempo, tempo -amigo e inimigo para sempre-
se ao menos nos emprestasse o melhor das horas,
se eternizasse os dias
ou se não nos tatuasse seus momentos,
por certo nos livraria
do cruel exercício do envelhecimento.

21 de junho de 2010

Escrevo


blogdocrato.blogspot.com

Escrevo
Maria da Graça Almeida


A escrita é o transbordar do excesso,
o derramamento do que já ultrapassou os limites.
É a forma de retratar o exagero dos sentimentos e a intensidade dos ritos.
Escrevo com a finalidade de resgatar o tempo e melhorar a relação com as letras que me desviam o pensamento da impotência do homem diante da finitude humana.
Escrevo como jeito de perscrutar a alma do leitor e nutrir-me das expectativas e dos sonhos de cada um, na tentativa de perpetuar mapas interiores e conservar pegadas que revelem as estradas onde piso.
Escrevo porque me apoio na impressão de que os homens sejam mais justos
e na convicção de que os justos sejam mais homens.
Escrevo para acreditar que ainda me habita a ilusão pueril de que o amor apresente-se somente como incondicional e eterna doação.
Quando pressentir que meus dizeres, já foram da mesma ou de outra forma ditos, desistirei de certas crenças e da mesmice da escrita.

17 de junho de 2010

Hipocrisia total


foto: psqemfoco-eventos.blogspot.com

Hipocrisia total
maria da graça almeida


Tempo do Natal:
generosidade assoberbada,
preocupação com os desfavorecidos,
súbita santidade,
humanos vestem-se de anjos.
Empunha-se a bandeira da solidariedade.
Nunca o homem foi tão bom!

Tempo da Copa:
sangue verde-amarelo,
juras de amor ao país,
reforços ao contorno do mapa
bandeiras nas sacadas,
nas janelas, nos carros.
Nunca o brasileiro foi tão patriota!

Findo o Natal, finalizada a Copa...
todos voltam ao normal
E o normal é a cara do dia a dia,
sem máscara, sem maquiagem:
descaso à situação do próximo,
desrespeito ao país e ao povo,
que, por sua vez,
desrespeita-se também.

Tempo e tempo:
tempos que não me convencem.
Tempos em que o calendário exala
euforia sazonal, hipocrisia total!

3 de junho de 2010

Borboleta


Borboleta
maria da graça almeida

Um rosto no espelho
mascarado dele mesmo...
É o tempo no vermelho,
falido, andando a esmo.
A mocidade esvaindo-se
sob olhares dispersos.
O viço subtraindo-se
diante dos alvos reflexos.

Que Deus nos auxilie
a enfrentar a realidade,
pois pior que a saudade
é a figura do passado,
que na sombra contrafeita
de um corpo alquebrado
teve a imagem imperfeita
e o semblante rasurado.

Bendita seja a lagarta
gosmento e grotesco ser,
porém fadado a ter
a imagem de uma floreta
que nas asas da beleza
faz voar a borboleta.

Um rosto no espelho
mascarado dele mesmo...
É o tempo no vermelho,
falido, andando a esmo.
A mocidade esvaindo-se
sob olhares perplexos.
O viço subtraindo-se
diante de novos complexos.

Baile de formatura


Baile de formatura
maria da graça almeida

No anel amarelo,
a pedra então falsa.
Franzido, singelo,
o vestido de alças...
Queria eu num elo
e em tempo da valsa,
o moço mais belo,
por força da graça.

E as moças donzelas,
as mais sensuais,
de rara beleza,
ao lado dos pais,
chamavam por ele,
pra ser o seu par,
o moço dourado,
o deus do lugar.

Meus ombros tremiam
e eu mais me agitava.
E ele gentil,
com todas dançava
e nem percebia
meu olho infantil,
colado ao seu...
Que céu sem anil,
que sina, meu Deus!

Findando a noite ,
a roupa amassada,
eu inconformada,
e a amiga me diz:
-É ele, está vindo!
Sorri! É feliz!
Chegando sozinho,
tão só por um triz
não erra o caminho!

Meu peito cansado
arfou exaurido,
então, apertado
e entristecido!

Enfim, ele chega
e falta-me o chão.
Sutil, a indagar,
segura-me as mãos:
- Disposta a dançar?

Acanhada e frágil,
não lhe respondi,
da amiga inábil,
resmungos ouvi.

O peito a pulsar,
senti-me sem ar,
descrente de mim,
não lhe disse sim.

Com a face sem cor
tentei me compor
e só fui capaz
de assim gaguejar:
- Agora, rapaz,
já nem quero mais.
- Que sorte fugaz!
- Diz isto, por quê?
- A mais linda valsa...
guardei pra você!

30 de maio de 2010

Lábios Vermelhos


Lábios Vermelhos
maria da graça almeida

Sobre a mesa, a régua longa, cor de canela, números grandes, brancos. Aterrorizados, meus olhos percorriam-na de ponta à ponta. Muitas vezes seu uso era indevido. Não recaía diretamente sobre ninguém, mas os golpes com ela desferidos, mesmo esfolando apenas mesas e cadeiras, chegavam a ser contundentes, porém, combinavam com a dona da voz seca e dura que a regia
-Aqui! Coloca o lápis aqui! Ouviu bem? Aqui! Aqui!
O lápis mudava de lado. Passava de uma mãozinha trêmula para a outra ainda mais. Desavisado, o menino permitia que seu queixo pontudo denunciasse-lhe o pânico. Sentia-se iminente um soluço.
Não chore, não chore - em pensamento, eu lhe pedia-.
Todas as manhãs, assim que eu chegava, de pronto examinava a sala conferindo sua presença. Se visse o corpinho franzino já a postos, um suspiro de alívio saia-me do peito: - Graças a Deus! Tomara que ele agüente. Tomara que ela desista. Ele, frágil, indefeso; ela, obstinada, persistente. Incansável! Ele pequeno, miúdo; ela, enorme, gigante. Batalha desigual.
Um dia, numa de suas investidas, ela torceu-lhe a orelha. Olhos arregalados, ele balbuciava algo indecifrável. Eu olhava dela o batom vermelho, laranja, amarelo, branco...Preto...tudo escuro. Bum! Um baque seco. Era minha cabeça que sobre a carteira despencara. Um súbito desfalecimento. O galo cantou.
- Essa menina não come nada, doutor! -Minha mãe preocupada. E o batom vermelho mudando de cor voltava à minha lembrança e meus ouvidos tornavam a captar os sons desconexos do menino.
- Veja, doutor, de repente, fica assim...branca! -Minha mãe insistia-.
Mais uns dias e o vi no pátio, no centro de um roda de moleques insolentes que se riam da sua gagueira. Antes ele falava lisinho, agora só aos solavancos. Emudecida, não tive coragem de assistir ao desfecho da crueldade. Tranquei-me no banheiro. E lá fiquei esquecida num canto úmido.
Será que amanhã ele virá? Veio. Uni meus dedos. Um gesto habitual de agradecimento aos céus. Mas os lábios vermelhos não desistiam. Moviam-se com rispidez, gritavam esbravejavam, cada vez mais alto, mais forte e insistiam na obrigação do pequeno.
E o lápis continuava a dança, de um lado por outro, um lado pro outro, de um lado pro outro...até que... pá! Um ruído seco! O rostinho do menino virado pro lado, na bochecha, a marca dos dedos longos e finos. Meu coração pulsava nos ouvidos.
Comecei a ver tudo com uma lentidão exagerada. E dolorida. O menino levantou-se, vagarosamente, subiu na carteira, olhou para todos e bradou com todas as força de um bravo e ultrajado soldado:
- Vai bater na tua filha e passar batom no teu...- a derradeira palavra, engoliu, pálido! Ficara assustado com a sonoridade de sua reação e a ausência momentânea da gagueira -. Solidária, e consciente do que viria depois - não desfaleci – tal qual ele, subi na carteira e tão alto quanto, gritei indignada:
- Vai mesmo, Dona Arlete! Vai, sim! A senhora ainda não sabe que o José Ciro é canhoto?!

Após a tentativa do primeiro ensinamento, pressenti qual seria minha profissão.

A primeira dor



A primeira dor
maria da graça almeida

Agora, morto...

Sentada no degrau da varanda, sob o céu azul de sempre, que de repente embranquecera, tive a real noção do meu tamanho. Era eu diminuta, no mundão de meu Deus...
Não entendia as folhas balançando com preguiça, nem conseguia compreender o que meu peito tentava explicar-me.
Perplexa, sentia uma dor que desconfiava não ser a do corpo.
Era a primeira vez que convivia com aquela sensação esquisita.
Olhava minhas mãos, meus braços, não via sinal nenhum.Feridas visíveis eu não tinha e
ainda assim experimentava uma ardência que, dentro de mim, confundia-se com um vazio
insuportável.

Logo que acordei, surpreendi minha mãe na cozinha.
Seus olhos boiavam.
Olhando o nada, ela confidenciava à ajudante:
- O menino morreu.
Entendi tudo. Falava do meu único amigo. Menino moreno, olhos profundos e brilhantes entre enormes cílios negros. Pernas finas, mas de uma vitalidade ímpar.
Nunca que eu conseguira acompanhar seu ritmo.
Veloz demais, não parava um minuto, subia e descia da camioneta do pai com uma agilidade admirável.
Era mais velho do que eu. Fizera nove anos, um quase adulto, na minha concepção, no entanto, tinha-me enquanto amiga. Era paciente comigo. Reconhecia-me.

Agora, morto...

A bicicleta que o levava de lá para cá, numa ruidosa alegria, acabou por conduzi-lo
ao céu, tão cedo...
Céu? Eu olhava para cima e apenas via a brancura sem graça das nuvens esparsas. De seu riso engraçado, o silêncio.
Tudo por causa de esfoladinho de nada, do qual tampouco ele reclamara...
Bicicleta desgraçada!
Tapei a boca com a mão para impedir que minha mãe ouvisse meu pensamento.
Ela, que não se dizia supersticiosa, detestava o termo, também a palavra azar.
Sempre que alguém os proferia, logo se mostrava preocupada:
- Não fale assim...não é bom.

Quando o soube doente, quis visitá-lo.
-Não pode! – era minha mãe consternada.
- Por quê?
- As visitas estão proibidas.–explica-me paciente- Ele está sensível aos ruídos. Qualquer barulho faz com que sofra de susto e tremores, convulsões. A febre é alta, está com tétano!
Tétano...eu repetia baixinho...soletrava devagarzinho: té-ta-no... nunca antes ouvira aquela palavra.
Quisera eu naquela hora emudecer os cães, aquietar os sussurros do vento, parar a andança dos carros e toda a movimentação que -com os aus, os vruns, os buns -aumentasse os ais do amigo.
Ele não podia sofrer. Precisava sarar e logo. Eu tinha pressa e certa estava de que ele também.

Agora, morto...

A idéia do nunca mais me desalentava. Sentia-me zonza, fraca.
E eu sempre tão lacrimejante não conseguia rolar os pingos que lavassem aquele sentimento estranho e infeliz.
A dor do corpo eu conhecera nas constantes crises de bronquite. Sem falar dos pontos que levei no pé, a seco, nada de anestesia. O médico que me socorreu era legista...fez o que pode...
Naquele dia eu inaugurava, com toda intensidade, a dor da alma.
Descobria a temperatura do medo. E a cor da aflição.

Soube que a impotência do homem não permite que ele conduza nem o próprio destino.
Minhas verdades assumiram o antes e o depois.
Não mais consegui viver sem estar sob a mira da preocupação.
Precocemente, comecei a perceber os sustos da sobrevivência.
Naquele dia conheci uma das esfarrapadas desculpas que a morte, com desenvoltura, costuma usar.
Nos baixos dos meus sete anos, não entendia por que a vida permitia que morte desse
a palavra final.
Ainda hoje não entendo.

24 de maio de 2010

Leninha



Leninha

maria da graça almeida

Sem pai,
mãe, marido.
A máquina de costura
quebrada...
Calma, Leninha,
logo voltará
a bordar sonhos,
a costurar ilusões
na trama
dos tecidos
que ora jazem
sobre a cama...
esquecidos.

Realidade

Realidade
maria da graça almeida

Vi a face
da adolescência
envelhecida,
o peito repleto
de realidade.
A realidade
desmedida
preocupa,
a preocupação
incontida
traz medo,
o medo aprisiona
a felicidade.

19 de maio de 2010

Sem rumo


Sem rumo
maria da graça almeida

Eu me perco de ti
nas noitadas sombrias,
na poesia, então, vazia,
nos versos de não te saber;
eu me perco de ti
nas madrugadas mais frias,
nas ausências doentias,
na ânsia do amanhecer.

Eu me perco de ti
nos dias ensimesmados,
nos sentires maltratados,
na vontade do prazer;
eu me perco de ti
no entardecer silente,
quando a sombra traz somente
o temor do escurecer!

Eu me perco de ti
se ansiosa inda te clamo
e de sofreres reclamo
por ternuras sem fim;
eu me perco de ti
ao me negares teu sim
e assim perdida de ti...
perco-me inteira de mim

12 de maio de 2010

Desatinos


Desatinos
Escrito por maria da graça almeida
Ter, 14 de Julho de 2009 15:01
Desatinos
maria da graça almeida

Entre o vento e a chuva,
bailam vultos escuros.
As mãos em finas luvas
resfriam-se na leveza do cetim.
Sementes adormecidas
despertam frutos maduros.

Suspiros de um querubim
embalam mariposas sem vida,
enquanto cigarras vespertinas
sussurram versos e prosa,
entoam cantigas de roda.

Gotas de sereno benzem
vaga-lumes apagados.
Em face do esplendor das cores
e das artimanhas do Divino,
soluça a alegria de um menino,
que teve o riso aprisionado
pelos espinhos das flores.

A desviar-se do destino,
a desfaçatez de um ateu
-para compor um longo hino,
em compassos peregrinos-
empresta as notas de Deus.

Maturidade e ancianidade


Maturidade e ancianidade
maria da graça almeida


Aqueles que amadurecem antes de envelhecer possuem bom entendimento do inevitável e boa relação com os limites impostos pelo avanço da idade, não fazem deles uma tragédia, tampouco transferem sua rejeição àqueles que já envelheceram.
Os que chegam à velhice sem que tenham atingido a maturação têm visível dificuldade de aceitação do murchar do vigor, do esmaecer da beleza. São inflexíveis, não toleram os aspectos naturais da vida, e, desta maneira, a metamorfose a que são submetidos toma uma dimensão insustentável, insuportável.
Inevitavelmente, estes são os que lançam mão de subterfúgios que lhes encubram ou que lhes velem a imagem no espelho. Necessitam, inclusive, de constantes relacionamentos com parceiros jovens, como forma de resgatarem o tempo através da juventude do companheiro. Esforçam-se para assemelharem-se a ele. O desejo de julgarem-se iguais aos jovens reflete sua insatisfação com a ancianidade, pois ao enfatizarmos as semelhanças, demonstramos o tamanho da preocupação com as diferenças.
Lamento que o amadurecimento não ocorra pelos esforços de cada um ou porque o desejemos com intensidade. Parece-me, na verdade, que ele é inconquistável. É feito a cor dos olhos, não é possível mudá-la, nem adquiri-la posteriormente.
A menos que se coloque uma lente colorida, os olhos são da cor que são e a maturação, naturalmente, acontece... ou não.
Envelhecimento e maturidade são coisas distintas.
Quanto mais forte a indignação com a ancianidade, tanto mais significativo o grau da imaturidade.

11 de maio de 2010

Esperas Azuis


As Esperas Azuis,
ora, quedam-se amarelas,
o tempo não tem tempo
de espiá-las da janela...sniff

8 de maio de 2010

Tolas reflexões


Tolas reflexões
maria da graça almeida

Nunca diga para sempre!
O sempre é atemporal.
Sempre evite dizer nunca,
o nunca é sempre imaterial.

Não se importe com o sempre,
o sempre sempre o seguirá,
o sempre é o ontem que hoje passou
e o hoje que amanhã ontem será.

Não se importe com o nunca.
Do nunca nunca saberá,
pois que o nunca, sendo nunca,
nunca, nunca chegará

7 de maio de 2010

Alguém para me ouvir


Alguém para me ouvir
maria da graça almeida

Hoje, eu sei o motivo de tanta terapia...
Não mais há ouvidos que ouçam,
se não os devidamente remunerados,
afinal, há um novelo em cada garganta
e um engasgo geral.
Será que as pessoas ficaram insensíveis?
Será que o tempo, no tempo, encurtou?
Será que a distância, com a distância, aumentou?
Ou será que a indiferença é a tônica da questão?
Hoje queria sentá-los na cama, como se ainda fossem
pequenas crianças, e dizer-lhes:
ouçam, prestem atenção, quero falar, escutem,
escrever só não me basta, é como se eu falasse sozinha,
não há resposta, não há uma voz, não há um som, não há troca.
Um desabafo por escrito não recebe a benevolência
de um gesto de amor, de um olhar afetuoso,
de uma palavra doce. Meu escritor aqui escreve
por falta de opção, por não ter com quem dividir
as expectativas, a ansiedade, o medo, a reflexão.

Deus! Tanto choro escutei, com paciência e mansidão;
tantas lágrimas aparei, com inexperientes mãos.
Será tão difícil ouvirem sem criticar,
escutarem sem agredir, calarem-se para ouvir-me?
O que incomoda a mim, pra vocês, eu sei, é bobagem
e o que os incomoda, para mim, saibam, é martírio.
Este é o diferencial, porém, quando suas
gargantas estiverem presas por falta de quem os escute,
falem comigo, pois, se eu não mais tiver a carnal condição de ouvir,
terei toda vontade astral de suas mágoas tentar reduzir.

6 de maio de 2010

A letra fala o que a boca engasga


A letra fala o que a boca engasga. A letra arruma o que a fala estraga. A letra aviva o que a voz apaga/M.da Graça Almeida

4 de maio de 2010

POEMAS CURTOS - Sulcos - Natureza Humana - Durante



POEMAS CURTOS

Sulcos
maria da graça Almeida

Talvez só um riso escancarado
aliviasse o amargor do ricto
que nos envelhece a face.
Não adianta a maquiagem.
Na solidão de um ventrículo vazio,
na seriedade de um ventríloquo mudo
não há disfarce que suavize
uma boca entre parênteses.


Natureza Humana
maria da graça Almeida

Sorriso enluarado,
longos braços de mar,
olhos de chuva leve,
mãos de doce ventar,
riso de queda d´água,
seios, vastas colinas,
cabelo, anel de nuvens
pernas, árvores finas.

Durante
maria da graça almeida

Durante é a hora
do tempo presente,
é tempo de agora,
que morre depois.
No tempo distante,
é tempo carente,
que fora do tempo,
perdido se foi.

Miséria


Miséria
maria da graça almeida

A fronte suada
que toca o chão,
sem fé ou certeza,
sem força pra nada,
suplica-lhe o pão
que cedo lhe falta.
A terra, que nega,
o braço suspende,
o grão não entrega,
a mão não estende.
O abutre tem pressa.
E, parca, a carcaça
nem enche o ventre
da ave que a caça.
A fome da ave
tem fome do homem
e a fome do homem
-eterna desgraça-
perpétua, não passa,
perene, não some-.

Conquistas
maria da graça almeida

Para o aprendizado e crescimento do homem,
o não inevitavelmente contribui,
seja ele de real ou de aparente contundência.
O que vem pronto não se busca;
do que não se busca não se apropria.
Da mão beijada, a chuva passageira;
do suor da conquista, a hidratação permanente.
O que se ganha é a efemeridade do ramalhete;
o que se planta é a certeza da semente.

3 de maio de 2010


Perplexidade
maria da graça almeida

Diante de fatos escandalosos e atos que ferem a dignidade de qualquer indivíduo de “bom caráter” percebemos três tipos olhares, com a capacidade de transmutarem-se no decorrer do tempo, por meio da frequência com que os episódios acontecem.
O habitual não é estranhável. A bem da verdade, não sei se absorvemos os hábitos ou se eles nos absorvem...

1- O primeiro olhar é o da lucidez. Permite-nos que, ao nos depararmos com fraudes, falcatruas, ignomínias, fiquemos estarrecidos, perplexos; inibamos a fé na humanidade. Passemos a achar que somos o único grão de trigo em meio de uma plantação de joio.

AÍ, GRITAMOS, ESPERNEAMOS, SAÍMOS PELAS RUAS EM PROTESTO!

2- O segundo olhar é o olhar da preguiça, enxergamos, mas não temos a disposição suficiente para agir com contribuição positiva na tentativa de acertamos o desacerto. É como se estivéssemos anestesiados das virtudes, dos princípios. É como se nossos valores estivessem desbotando e o véu da inércia tolhesse-nos as reações necessárias.

AÍ, SUSPIRAMOS, BOCEJAMOS E VAMOS DORMIR DE PANTUFAS!

3-O terceiro olhar, o mais perigoso, é o que comumente anda vazando pelos olhos, principalmente os dos brasileiros. É aquele que enxerga bem, capta a essência dos fatos, mas que se tivesse a oportunidade compactuaria com as vergonhas, com as vilezas que também o fizessem usufruir os privilégios.

AÍ, DAMOS DE OMBRO E SONHAMOS COM UM IATE, UM JATINHO E UMA COBERTURA NA VIEIRA SOUTO.

Infelizmente, este, o pior dos olhares, é o que mais comumente
encontramos por aí.
Valha-nos, Santa Luzia, a santa protetora dos olhos!

Em que situações já usamos os olhares 1, 2 e 3?
Fácil:
Olhar 1- escândalo do Executivo-
Olhar 2- escândalo do Legislativo -
Olhar 3- escândalo do Judiciário -
(Até tu Brutus?)
Corruptos julgam corruptos?


ENTÃO... A QUEM RECORRER?
..................................................................
Ei! Querem tirar os olhos de meus carros novos? Acertei na loteria...vinte e sete vezes!

Língua líquida
maria da graça almeida

A líquida língua vaza! Infiltra-se entre os dentes, rompe os limites dos lábios, gotejando boca afora ou entornando livremente... Não há fronteira que a reprima, não há limite que a contenha. O dono da língua líquida possui ouvidos alados que saem pelas orelhas, lúcidos ou atordoados, diretos ou de qualquer maneira e, colhendo informações, voam pra todo lado! Temo essa língua por ela, pelos ouvidos que a acompanham e por todos ouvidos alheios nos quais chega, sem medo, a relevar os segredos. Se uma dessas, liquefeitas, vem molhar-me os ouvidos, afasto-a rapidamente, secando depressa o líquido, temendo que tal proximidade, impune, contamine-me a língua e que por momentos, instantes ou pelo restante da vida, liquefaça-a abundante, infame larga, solta e incontida...

1 de maio de 2010


Instrumento
maria da graça almeida

Jamais quero estar,
do mundo, em algum lugar,
onde, de certa maneira,
usem-me como instrumento
das desventuras alheias.

Jamais quero servir
de arma para cumprir
os desígnios de um destino,
ainda que tais desígnios
tracem tão-só o caminho
de apenas um passarinho.

Precipitação
maria da graça almeida



Não julgue

o peito pela gravata,

o ser pela data,

a voz pela boca,

a cabeça pela touca,

o fato pelos sentidos,

o cão pelos latidos.



Não rotule

o presente pela caixa,

o vinho pela garrafa,

o livro pelo autor,

a peça pelo ator,

o feito pelos perigos,

as dores pelos gemidos.



Não classifique

o homem pelo retrato,

o pão pelo formato,

a comida pelo prato,

o perfume pelo frasco,

a mulher pelos vestidos,

o casamento pelos maridos.



Seja lá o que for,

avalie apenas

quando sabedor

da massa que recheou

as profundezas

do espaço interior.

Monorrimo paupérrimo-em todos os sentidos-
maria da graça almeida

Sobram bocas, falta o pão,
sobre a terra nenhum grão.
Muitos dentes, poucas mãos...
muitos filhos, pouco chão,
pouco sim e muito não,
sem o arroz, sem o feijão,
fio de água sem sabão.
Sobre a terra nenhum grão,
sobram bocas, falta o pão.

Poucos passos, muitos pés,
muita reza, pouca fé;
pouco agora, muito até,
sem manteiga e sem café,
baixo o som, alto o banzé,
tantos ossos sem filé ,
um doutor, vários Josés.
Poucos passos, muitos pés;
muita reza, pouca fé .

Sobre a terra nenhum grão,
sobram bocas, falta o pão.
Poucos passos, muitos pés,
míngua a reza, finda a fé.

Pintura de Rembrant
maria da graça almeida

O embotamento sexagenário
caracteriza as dores da figura.
Na rigidez da postura,
o homem compõe o cenário
com os odores da clausura.

30 de abril de 2010


Maria da Graça Almeida por
José-Augusto Carvalho
Viana do Alentejo- Portugal



O discurso, o estilo, a versificação... e que mais?
A Poetisa Maria da Graça Almeida conseguiu encontrar a beleza da pluralidade temática na singularidade poética. Queremos com isto dizer que a Poetisa é sempre ela mesma, porque o seu discurso nunca viola o seu estilo. Nem poderia violar, porque as emoções são autênticas, são saboreadas, são sentidas, são sofridas!
A versificação é, em Maria da Graça Almeida, mais uma variedade de ritmos do que uma norma pré-estabelecida. Cultiva tanto o versilibrismo como o verso medido.
E com a mesma desenvoltura e a mesma segurança.

* Nota final. Necessária. Indispensável. Rigorosa.
Sabemos e queremos este trabalho como uma aproximação
à Poesia de Maria da Graça Almeida. Uma descoberta a
desafiar quem não leu a sua poesia.
José Augusto de Carvalho

Beija-flor
maria da graça almeida

Toda vez que comovido
bem de leve toca a flor
sai com o bico ferido,
retirando-se sem cor!

Desolada com a cena,
a Margarida com pena,
doce, pede ao passarinho,
que lhe dê o seu carinho.

A ave, voando em festa,
pressente do espinho a dor
e teimosa só empresta
beijos sempre à mesma flor!

Margarida com ciúme,
desprovida do perfume,
chora ao vir o bem amado
pela Rosa maltratado:

-Não tenho dela o olor,
porém, não possuo espinhos,
beije-me com muito amor,
eu não firo passarinhos!

- Flor miúda, graciosa,
meu martírio ora lhe digo,
eu jamais amei a Rosa,
amo apenas o perigo!

maria da graça almeida

Branquinha
maria da graça almeida

Sou aquosa e incolor,
finjo ser inofensiva,
trago forte o sabor
e no efeito sou ativa.

Que ameaça com alarde,
do engenho, sou a "cana".
Encorajo os covardes
e eles metem-se à bacana.

Ébria, eterna, eu barganho
o inteiro pelo meio.
Os caminhos eu estranho
e as mentes incendeio.

Sou no mundo a má semente
e do vício, o lado quente.
Sou nascida pra que aclame
quem nasceu para o vexame.

29 de abril de 2010


Música
maria da graça almeida

A música insiste
em meus ouvidos.
O tom indeciso,
os intervalos titubeantes
ferem feito o chicote
no dorso de um fugitivo
resgatado para
cumprir a sentença.
Ou, tais quais as pedras
nos pés doridos
de um faminto retirante ,
sozinho,
perdido pelos
atalhos do caminho.

As notas de sofreres
ensimesmados,
por livre arbítrio,
abusam da liberdade
das fermatas.

Nas pautas do desalento,
os sons ousam um agudo.
É quando o dissabor da partitura
indicia colcheias amedrontadas
pinçadas do pensamento;
semifusas confusas
e claves angustiadas,
que apenas denominam
os lamentos.

Os acordes dissonantes gemem
entre pausas contundentes.
E o girassol...
Ah! Os girassóis... se pelo menos
não se voltassem para ouvi-la...
mas, a sonoridade se atreve
e a melodia descreve
o mesmo percurso do sol.


maria da graça almeida

Autenticidade
maria da graça almeida

A criança é surpresa, é descoberta. Não se abate pelo tédio, não se oculta em segredos, nem tem razão para o remorso. Permite-se ousar, por isso pratica os sonhos, com a mesma serenidade com que adormece.
Quando não sabe, inventa; quando não pode, imagina; quando desconhece, descobre.
O que para nós - os já saturados de realidade - é absurdo, para ela é normal, natural. Suas possibilidades ainda não foram poluídas ou influenciadas pela racionalidade humana, pela indocilidade urbana, nem pela crueldade social.

Aos três anos, Felipe, filho único, queria um irmão. Remexeu o armário das panelas. Colocou-as no chão e, com a colher-de-pau, acreditava cozinhar.
Compenetrado, explicou à mãe:
- Vou fazer um irmãozinho.

Empreendia a batalha para a realização do desejo, uma ação positiva, advinda da certeza do querer: eu quero e faço, não espero por ninguém. Eu quero e consigo, ou, dou-me o direito e a oportunidade de tentar.
Ainda que não tenha verbalizado o pensamento, sua ação, por si , veemente, proferiu o discurso.
O equívoco de uma manobra não invalida a tentativa e nem frustra o manobreiro, uma vez que, a cada experimento, saímos reforçados nos propósitos e sentimos, plena, a nossa determinação.

Paris
-maria da graça almeida-

Paris tem certa magia,
nem bem posso explicar...
É uma coisa que indicia
o elã, livre, no ar.
É a alma que se amplia,
como um raio de luar,
é a cor da fantasia,
que se espalha no lugar.

É a arte do imortal,
ou o ofício do mambembe,
é a tinta natural,
da mão firme, que não treme.
É a torre colossal,
férrea, que o espaço não teme.
É um arco triunfal,
das avenidas, o leme.

É o perfume, o olor
da mulher que não se apressa,
é, no Sena, o rumor
dos barcos, fazendo festa.
Paris tem certa magia,
nem bem posso explicar...
É uma coisa que indicia
o elã, livre, no ar. ...

O filho do meio
Do livro Olhos Espertos

De Maria da Graça Almeida

Assim tão bonito...
e ninguém me adula!
Não sou o primogênito,
nem sou o caçula.
Não sou o primeiro,
tampouco, o terceiro.
Sou filho do meio
e, de graça, sou cheio
Do tal sanduíche,
sou só o recheio.
Mas...digo a verdade
e ganho a aposta:
sempre é do recheio
que todos mais gostam!

27 de abril de 2010

Benedita 
maria da graça almeida

 Moça nova, a Benedita... 
 sorri com ares de santa.
 E as provações, tantas!
 Os óculos são cegos, 
 a muleta claudica,
 a bengala manca. 
 A artificialidade externa é falha.
 Melhor se inda contasse
 com a locomoção pelas próprias pernas;
 com a emoção pela própria visão.
   A crueldade interna atrapalha. 
 Moça nova, a Benedita... 
 À prova, não mais me fita,
 tampouco me acompanha.

Lavadeira
maria da graça almeida

- E a cinza da fornalha
entranhada na toalha?
- Da minha unha está embaixo,
ou desceu pelo riacho...
........................

Sob o balde, a rodilha,
esmagada, sobe a trilha.
Amarrada em velha colcha
mais pesada é a trouxa.

Ligeirinha, a toda hora,
molha, lava, torce e cora.
Braço fino, sem canseira,
vai lavando, a lavadeira.

Extremosa, em boas águas,
ensaboa, bate e enxagua.
Ao trabalho não se nega,
examina, afoga, esfrega.

Sobre a calça e a camisa,
a espuma economiza.
Quando roto o vestido,
lava o fio só de comprido.

Louva o vento, estica a lida
no varal pendura a vida.
A alvura da bandeira
credencia a lavadeira.
Confessional
maria da graça almeida

Mesmo com a lembrança inconveniente,
o esquecimento fatal, a falta de requinte,
o jeito natalino de enfeitar-se;
mesmo com os excessos, as omissões,
as doações e as mesquinharias,
mesmo com os palavrões
ou os prolongados silêncios,
sua presença é desejada.
Sinto falta das sonoras gargalhadas,
entristeço-me em face da distância,
de sua existência destrambelhada.

Dos que me conquistam,
suporto os defeitos...
Acostumo-me com os deslizes
e tenho-os apenas tais quais
pueris arroubos de uma autêntica
personalidade.
Quando gosto é assim.
Abro as comportas da emoção!
Aos amigos, tudo! Aos desafetos,
que são menos do que os dedos de u a mão,
apenas o que pode suportar a mágoa
que me descompassa
o coração.

(static.music.com.bd/)

Amar
maria da graça almeida

Amar é o arrepio que se sente no verão;
é levitar sem tirar os pés do chão;
é tentar dormir para outra vez sonhar
um sonho do qual não se quer mais despertar.

Amar é carregar um fardo de emoção,
é gelar as mãos no afã da pulsação;
é crer anil um céu dormente e desbotado
e ter o dia feito domingo ou feriado.

É o reflorescer seja em qualquer idade
e entre a razão e o coração pressentir
que a paixão não tem prazo de validade.

É manter no amado o primeiro namorado
e encantar-se com seu jeito de sorrir,
mesmo que com este já esteja acostumado.

26 de abril de 2010



O Vaga-lume
maria da graça almeida

Pisca, pisca o vaga-lume,
tão bonito é seu lume!
Pisca sempre sem parar,
seu piscar já é costume.

O miúdo vaga-lume
causa até muito ciúme,
pois, constante e interna,
ele traz sua lanterna.

Ela é feito a luz do dia,
toda cheia de energia,
nem precisa o vaga-lume
trocar sua bateria!

maria da graça almeida
ma.gla@uol.com.br

Poema Artesanato
Maria da Graça Almeida


Minha poesia é inglória,
vive em bancas incertas.
Do pódio e das vitórias,
traduz histórias discretas.
Nos dizeres, incontida,
minha poesia é de lua,
às vezes, reza vestida,
às vezes discursa nua.
Meu poema é artesanato.
E sai-me pronto das mãos.
Coso-o, com muito cuidado,
cirzo-o, sem distração.
Às vezes vem das sucatas,
de contas e velhos botões,
de renda e fitas baratas,
da fieira dos piões.
Que ressona atrás da porta,
tem os pêlos de um cão,
no final das linhas tortas
traz pena, paina, algodão.
Tem cores das violetas,
pose de pedra-sabão.
Nas asas da borboleta,
nem coloca os pés no chão.
O poema-artesanato
traz ponto-cruz, bordaduras.
É sempre um simples retrato
de uma notória figura.

25 de abril de 2010


No dia seguinte...
maria da graça almeida

Brinquedos, biscoitos
jogados ao chão
nos vidros e sofás,
indícios de mãos.
Findou a euforia,
graça, confusão!
Rompeu novo dia
vazio de emoção.

21 de abril de 2010


Abstrato quê
maria da graça almeida

Em meus ouvidos moram gemidos, que soturnos retraem-se;
no coração trago mitos que um dia enalteci,
em minha boca tenho gritos, que emudecidos esvaem-se;

Através de certas feridas, tardiamente, entendi
que as cores da vida, da aura e da alma dependem das dores que cada um traz dentro de si.

É impossível interagir com enigmáticas damas,
que têm, justa, a fama de levarem no trato um quê
do triunvirato mais abstrato que já conheci.



O servir -ainda que, às vezes, religiosamente
correto- cansa. Cada um responde ao servilismo
como melhor lhe aprouver.
Maria da Graça ALmeida

Maria Mortalha

Maria da Graça Almeida


Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,

vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.

Os olhos, tanto mais fundos, coroados por olheiras,

cerravam-se moribundos, nessa hora derradeira.



Implorando-lhe ajuda, veio um moleque qualquer

- Vó, apanha uma agulha, tira-me o bicho do pé!

Servil, levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha

e já mais morta que viva o bicho do pé estraçalha.



Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,

quando lhe chega a nora , chorando a fome e a sorte.

Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,

serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.

Com a fome, então, saciada e o corpo fortalecido,

parte a jovem senhora com olhos agradecidos.



Maria assim, novamente, põe-se no leito de palha,

julgando que certamente não mais tiraria a mortalha.

E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.

Queria do sal só um pouco que lhe salgasse o feijão.

Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...

pra atender a boa vizinha, ergueu-se mesmo ofegante.

Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.

Maria já fria descora e aguarda da Morte a hora.



A Morte, que vinha chegando, notou-a em pele ardente,

porém, percebeu que a lida tornara Maria valente.

Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,

ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.

Maria coloca, surpresa, os olhos esbugalhados

sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.



A Morte impõe, soberana: - Sobreviva só mais um dia,

ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!

E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,

exige-lhe que ao fogo torne o leite que frio jazia.



Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha

e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte detalha:

- Em face dos desmandos alheios,

viverei mais um ano e meio.



Maria da Graça Almeida/2001
texto publicado na Antologia Prêmio Cultura Nacional