30 de abril de 2010


Maria da Graça Almeida por
José-Augusto Carvalho
Viana do Alentejo- Portugal



O discurso, o estilo, a versificação... e que mais?
A Poetisa Maria da Graça Almeida conseguiu encontrar a beleza da pluralidade temática na singularidade poética. Queremos com isto dizer que a Poetisa é sempre ela mesma, porque o seu discurso nunca viola o seu estilo. Nem poderia violar, porque as emoções são autênticas, são saboreadas, são sentidas, são sofridas!
A versificação é, em Maria da Graça Almeida, mais uma variedade de ritmos do que uma norma pré-estabelecida. Cultiva tanto o versilibrismo como o verso medido.
E com a mesma desenvoltura e a mesma segurança.

* Nota final. Necessária. Indispensável. Rigorosa.
Sabemos e queremos este trabalho como uma aproximação
à Poesia de Maria da Graça Almeida. Uma descoberta a
desafiar quem não leu a sua poesia.
José Augusto de Carvalho

Beija-flor
maria da graça almeida

Toda vez que comovido
bem de leve toca a flor
sai com o bico ferido,
retirando-se sem cor!

Desolada com a cena,
a Margarida com pena,
doce, pede ao passarinho,
que lhe dê o seu carinho.

A ave, voando em festa,
pressente do espinho a dor
e teimosa só empresta
beijos sempre à mesma flor!

Margarida com ciúme,
desprovida do perfume,
chora ao vir o bem amado
pela Rosa maltratado:

-Não tenho dela o olor,
porém, não possuo espinhos,
beije-me com muito amor,
eu não firo passarinhos!

- Flor miúda, graciosa,
meu martírio ora lhe digo,
eu jamais amei a Rosa,
amo apenas o perigo!

maria da graça almeida

Branquinha
maria da graça almeida

Sou aquosa e incolor,
finjo ser inofensiva,
trago forte o sabor
e no efeito sou ativa.

Que ameaça com alarde,
do engenho, sou a "cana".
Encorajo os covardes
e eles metem-se à bacana.

Ébria, eterna, eu barganho
o inteiro pelo meio.
Os caminhos eu estranho
e as mentes incendeio.

Sou no mundo a má semente
e do vício, o lado quente.
Sou nascida pra que aclame
quem nasceu para o vexame.

29 de abril de 2010


Música
maria da graça almeida

A música insiste
em meus ouvidos.
O tom indeciso,
os intervalos titubeantes
ferem feito o chicote
no dorso de um fugitivo
resgatado para
cumprir a sentença.
Ou, tais quais as pedras
nos pés doridos
de um faminto retirante ,
sozinho,
perdido pelos
atalhos do caminho.

As notas de sofreres
ensimesmados,
por livre arbítrio,
abusam da liberdade
das fermatas.

Nas pautas do desalento,
os sons ousam um agudo.
É quando o dissabor da partitura
indicia colcheias amedrontadas
pinçadas do pensamento;
semifusas confusas
e claves angustiadas,
que apenas denominam
os lamentos.

Os acordes dissonantes gemem
entre pausas contundentes.
E o girassol...
Ah! Os girassóis... se pelo menos
não se voltassem para ouvi-la...
mas, a sonoridade se atreve
e a melodia descreve
o mesmo percurso do sol.


maria da graça almeida

Autenticidade
maria da graça almeida

A criança é surpresa, é descoberta. Não se abate pelo tédio, não se oculta em segredos, nem tem razão para o remorso. Permite-se ousar, por isso pratica os sonhos, com a mesma serenidade com que adormece.
Quando não sabe, inventa; quando não pode, imagina; quando desconhece, descobre.
O que para nós - os já saturados de realidade - é absurdo, para ela é normal, natural. Suas possibilidades ainda não foram poluídas ou influenciadas pela racionalidade humana, pela indocilidade urbana, nem pela crueldade social.

Aos três anos, Felipe, filho único, queria um irmão. Remexeu o armário das panelas. Colocou-as no chão e, com a colher-de-pau, acreditava cozinhar.
Compenetrado, explicou à mãe:
- Vou fazer um irmãozinho.

Empreendia a batalha para a realização do desejo, uma ação positiva, advinda da certeza do querer: eu quero e faço, não espero por ninguém. Eu quero e consigo, ou, dou-me o direito e a oportunidade de tentar.
Ainda que não tenha verbalizado o pensamento, sua ação, por si , veemente, proferiu o discurso.
O equívoco de uma manobra não invalida a tentativa e nem frustra o manobreiro, uma vez que, a cada experimento, saímos reforçados nos propósitos e sentimos, plena, a nossa determinação.

Paris
-maria da graça almeida-

Paris tem certa magia,
nem bem posso explicar...
É uma coisa que indicia
o elã, livre, no ar.
É a alma que se amplia,
como um raio de luar,
é a cor da fantasia,
que se espalha no lugar.

É a arte do imortal,
ou o ofício do mambembe,
é a tinta natural,
da mão firme, que não treme.
É a torre colossal,
férrea, que o espaço não teme.
É um arco triunfal,
das avenidas, o leme.

É o perfume, o olor
da mulher que não se apressa,
é, no Sena, o rumor
dos barcos, fazendo festa.
Paris tem certa magia,
nem bem posso explicar...
É uma coisa que indicia
o elã, livre, no ar. ...

O filho do meio
Do livro Olhos Espertos

De Maria da Graça Almeida

Assim tão bonito...
e ninguém me adula!
Não sou o primogênito,
nem sou o caçula.
Não sou o primeiro,
tampouco, o terceiro.
Sou filho do meio
e, de graça, sou cheio
Do tal sanduíche,
sou só o recheio.
Mas...digo a verdade
e ganho a aposta:
sempre é do recheio
que todos mais gostam!

27 de abril de 2010

Benedita 
maria da graça almeida

 Moça nova, a Benedita... 
 sorri com ares de santa.
 E as provações, tantas!
 Os óculos são cegos, 
 a muleta claudica,
 a bengala manca. 
 A artificialidade externa é falha.
 Melhor se inda contasse
 com a locomoção pelas próprias pernas;
 com a emoção pela própria visão.
   A crueldade interna atrapalha. 
 Moça nova, a Benedita... 
 À prova, não mais me fita,
 tampouco me acompanha.

Lavadeira
maria da graça almeida

- E a cinza da fornalha
entranhada na toalha?
- Da minha unha está embaixo,
ou desceu pelo riacho...
........................

Sob o balde, a rodilha,
esmagada, sobe a trilha.
Amarrada em velha colcha
mais pesada é a trouxa.

Ligeirinha, a toda hora,
molha, lava, torce e cora.
Braço fino, sem canseira,
vai lavando, a lavadeira.

Extremosa, em boas águas,
ensaboa, bate e enxagua.
Ao trabalho não se nega,
examina, afoga, esfrega.

Sobre a calça e a camisa,
a espuma economiza.
Quando roto o vestido,
lava o fio só de comprido.

Louva o vento, estica a lida
no varal pendura a vida.
A alvura da bandeira
credencia a lavadeira.
Confessional
maria da graça almeida

Mesmo com a lembrança inconveniente,
o esquecimento fatal, a falta de requinte,
o jeito natalino de enfeitar-se;
mesmo com os excessos, as omissões,
as doações e as mesquinharias,
mesmo com os palavrões
ou os prolongados silêncios,
sua presença é desejada.
Sinto falta das sonoras gargalhadas,
entristeço-me em face da distância,
de sua existência destrambelhada.

Dos que me conquistam,
suporto os defeitos...
Acostumo-me com os deslizes
e tenho-os apenas tais quais
pueris arroubos de uma autêntica
personalidade.
Quando gosto é assim.
Abro as comportas da emoção!
Aos amigos, tudo! Aos desafetos,
que são menos do que os dedos de u a mão,
apenas o que pode suportar a mágoa
que me descompassa
o coração.

(static.music.com.bd/)

Amar
maria da graça almeida

Amar é o arrepio que se sente no verão;
é levitar sem tirar os pés do chão;
é tentar dormir para outra vez sonhar
um sonho do qual não se quer mais despertar.

Amar é carregar um fardo de emoção,
é gelar as mãos no afã da pulsação;
é crer anil um céu dormente e desbotado
e ter o dia feito domingo ou feriado.

É o reflorescer seja em qualquer idade
e entre a razão e o coração pressentir
que a paixão não tem prazo de validade.

É manter no amado o primeiro namorado
e encantar-se com seu jeito de sorrir,
mesmo que com este já esteja acostumado.

26 de abril de 2010



O Vaga-lume
maria da graça almeida

Pisca, pisca o vaga-lume,
tão bonito é seu lume!
Pisca sempre sem parar,
seu piscar já é costume.

O miúdo vaga-lume
causa até muito ciúme,
pois, constante e interna,
ele traz sua lanterna.

Ela é feito a luz do dia,
toda cheia de energia,
nem precisa o vaga-lume
trocar sua bateria!

maria da graça almeida
ma.gla@uol.com.br

Poema Artesanato
Maria da Graça Almeida


Minha poesia é inglória,
vive em bancas incertas.
Do pódio e das vitórias,
traduz histórias discretas.
Nos dizeres, incontida,
minha poesia é de lua,
às vezes, reza vestida,
às vezes discursa nua.
Meu poema é artesanato.
E sai-me pronto das mãos.
Coso-o, com muito cuidado,
cirzo-o, sem distração.
Às vezes vem das sucatas,
de contas e velhos botões,
de renda e fitas baratas,
da fieira dos piões.
Que ressona atrás da porta,
tem os pêlos de um cão,
no final das linhas tortas
traz pena, paina, algodão.
Tem cores das violetas,
pose de pedra-sabão.
Nas asas da borboleta,
nem coloca os pés no chão.
O poema-artesanato
traz ponto-cruz, bordaduras.
É sempre um simples retrato
de uma notória figura.

25 de abril de 2010


No dia seguinte...
maria da graça almeida

Brinquedos, biscoitos
jogados ao chão
nos vidros e sofás,
indícios de mãos.
Findou a euforia,
graça, confusão!
Rompeu novo dia
vazio de emoção.

21 de abril de 2010


Abstrato quê
maria da graça almeida

Em meus ouvidos moram gemidos, que soturnos retraem-se;
no coração trago mitos que um dia enalteci,
em minha boca tenho gritos, que emudecidos esvaem-se;

Através de certas feridas, tardiamente, entendi
que as cores da vida, da aura e da alma dependem das dores que cada um traz dentro de si.

É impossível interagir com enigmáticas damas,
que têm, justa, a fama de levarem no trato um quê
do triunvirato mais abstrato que já conheci.



O servir -ainda que, às vezes, religiosamente
correto- cansa. Cada um responde ao servilismo
como melhor lhe aprouver.
Maria da Graça ALmeida

Maria Mortalha

Maria da Graça Almeida


Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,

vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.

Os olhos, tanto mais fundos, coroados por olheiras,

cerravam-se moribundos, nessa hora derradeira.



Implorando-lhe ajuda, veio um moleque qualquer

- Vó, apanha uma agulha, tira-me o bicho do pé!

Servil, levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha

e já mais morta que viva o bicho do pé estraçalha.



Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,

quando lhe chega a nora , chorando a fome e a sorte.

Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,

serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.

Com a fome, então, saciada e o corpo fortalecido,

parte a jovem senhora com olhos agradecidos.



Maria assim, novamente, põe-se no leito de palha,

julgando que certamente não mais tiraria a mortalha.

E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.

Queria do sal só um pouco que lhe salgasse o feijão.

Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...

pra atender a boa vizinha, ergueu-se mesmo ofegante.

Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.

Maria já fria descora e aguarda da Morte a hora.



A Morte, que vinha chegando, notou-a em pele ardente,

porém, percebeu que a lida tornara Maria valente.

Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,

ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.

Maria coloca, surpresa, os olhos esbugalhados

sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.



A Morte impõe, soberana: - Sobreviva só mais um dia,

ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!

E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,

exige-lhe que ao fogo torne o leite que frio jazia.



Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha

e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte detalha:

- Em face dos desmandos alheios,

viverei mais um ano e meio.



Maria da Graça Almeida/2001
texto publicado na Antologia Prêmio Cultura Nacional